Havana é aqui! (ou deveria ser…)
Muito distante da memória dos tempos dos cassinos, quando a cidade era cenário para a realização de todas as taras do imaginário norte-americano branco, existe uma Havana negra que, há quase seis décadas, vem aprendendo a fazer muito com muito pouco. Fazer muito e muito bem feito. Foi esta a Havana que o guitarrista e compositor Toninho Crespo, como um bom garimpeiro, descobriu, com a qual encantou-se e que explorou com seu suingue, repleto de deslumbramento: músicos de primeira, que aprenderam a desenvolver seu talento na escola pública, onde a Educação está entre as melhores do mundo, apesar dos professores não receberem mais do que 30 dólares por mês.
Das lavras de ouro e pedras preciosas havanesas se extraíram verdadeiras joias, de esmerados designs, em forma de reggaes, bossa-novas, cha-cha-chás, sambas-rock e outras delícias dançantes que só poderiam mesmo nascer da união de músicos cubanos e brasileiros negros, uma negritude musical diaspórica, que gera os melhores ritmos caribenhos e sul-americanos.
À primeira vista a situação em Cuba continua a mesma
Quatorze anos depois de sua primeira viagem àquela ilha e de apresentar-se com alguns músicos locais, a carta recebida em 2010, do amigo cubano Félix Pablo Viltres, baterista rastafariano convicto, integrante da banda de reggae Remanente, apanhou Toninho Crespo de surpresa. Falava das dificuldades pelas quais passavam grupos musicais como o dele. A vontade do músico brasileiro era de fazer um pacote com apetrechos instrumentais e enviar-lhe. “Mas resolvi ir pessoalmente, em maio, dar uma força ao amigo – explica o guitarrista – apesar de eu próprio também não ter grandes oportunidades artísticas em minha cidade natal: São Paulo-Brasil”.
À primeira vista a situação em Cuba continua a mesma. Na luta entre o mar e o rochedo quem sofre é o marisco. E os “mariscos” cubanos pagam um preço alto demais, apesar da dignidade e qualidade que lhe são garantidas nos campos da Educação, da Cultura viva – em especial a afro-cubana – e da Saúde.
“Félix foi me conectando com a comunidade rastafári de Havana e não demorou para eu começar a participar de eventos com a banda Remanente, nos quatro cantos da cidade – comenta Toninho Crespo – Destas participações surgiu a ideia de gravarmos juntos. Antes de eu voltar para São Paulo, fiz um reggae em homenagem àquela cidade, que batizei de Gracias Habana. Percebi que eles curtiram muito”. O músico brasileiro não deixou de saborear algumas festas da Santeria, o Candomblé cubano.
Ao se ouvir o CD BOSSA LOCA […] o único desejo que aflora é bradar: “Viva, la Habana!!!”
Em novembro do mesmo ano, incomodado com todo o potencial que viu nas pessoas e na garra de viver com tão pouco, Crespo retornou a Havana para iniciar as gravações e prosseguir com um intercâmbio cultural dentro da Diáspora afro-latina: “O guitarrista David Diáz, da Remanente, me apresentou ao produtor Japo. No estúdio dele, gravamos meu samba-rock No Pé da Namorada, com o vocal da banda, Felipe Cardenás e Ana Regla. A música recebeu uma letra em espanhol da poeta peruana Monica Carrillo, que vive nos EUA. Japo fez um remix da base instrumental desse samba-rock com elementos da música cubana, que recebeu o nome de Buena Mezcla. Não poderia ter um melhor começo para gravarmos um CD completo em Havana. Nos quatro anos que se seguiram, fui a Cuba sete vezes e o álbum BOSSA LOCA está pronto para o lançamento”.
Por falar em mesclas, desse encontro nasceram algumas fusões como o Bossa-Cha (Bossa Nova com Cha-cha-chá), Bossa-Songo (Bossa Nova com o ritmo afro Songo), Samba Rock-Casino (Samba Rock, mesclado com ritmos e sonoridades caribenhas), muito reggae, jazz latino e outros ritmos bastante dançantes e calientes.
Nestes quatro anos de idas e vindas Toninho Crespo teve a oportunidade e a boa sorte – que ele saúda com um “IRÊ Ô!” – de conhecer muitos artistas afro-cubanos da música, da poesia, da dança, das artes plásticas, do teatro, da fotografia e do cinema.
Por isso ele conclui: “Posso afirmar tranquilamente que este CD BOSSA LOCA é resultado da vivência coletiva entre artistas da diáspora afro-latino- americana. A mistura de ritmos, harmonias, melodias, poesias, línguas latinas colonialistas me deixou com a certeza de que esse intercâmbio vai continuar…”
Ao se ouvir o CD BOSSA LOCA com Toninho Crespo e esses talentosos e sensíveis músicos cubanos, o único desejo que aflora é bradar: “Viva, la Habana!!! Vida longa à negritude musical da Diáspora Africana!!!”
* Por Oswaldo Faustino.