De Itamar a Branca Di Neve: qual a história de Nego Dito
“Meu nome é Benedito João dos Santos Silva Beleléu”. Esse refrão é muito conhecido na voz de Branca Di Neve, que gravou Nego Dito em seu primeiro álbum solo, lançado em 1987. Mas a faixa foi composta por Itamar Assumpção e gravada originalmente sete anos antes.
Itamar foi um dos expoentes do que ficou conhecido como Vanguarda Paulista, um movimento formado por artistas que não tinham espaço em grandes gravadores e resolveram lançar seus discos de forma alternativa.
Era também conhecido como um dos “malditos” da Música Popular Brasileira, termo usado para se referir aos artistas que não se encaixavam no padrão de rádios comerciais. Assim como Itamar, cantores como Jards Macalé, Luiz Melodia, Sérgio Sampaio, entre outros, também fizeram parte do grupo de “malditos”.
Nego Dito apareceu em Beleléu Leléu Eu, álbum de Itamar com a banda Isca de Polícia. O trabalho foi lançado em 1980 pelo selo independente Lira Paulistana, ligado ao teatro de mesmo nome que ficava em São Paulo, e financiado por dois funcionários do local.
No mesmo ano, a gravadora Continental lançou a coletânea Festival da Feira da Vila Madalena, que inclui uma gravação ao vivo de Nego Dito e outras músicas apresentadas durante um concurso no bairro paulistano.
No vídeo abaixo, o produtor musical Pena Schmidt, um dos responsáveis por essa coletânea, conta como descobriu o trabalho de Itamar Assumpção.
Quem é Nego Dito?
Podemos fazer algumas interpretações sobre o personagem apresentado na letra. Uma delas é a de que “Benedito” é uma referência ao santo negro da Igreja Católica – padroeiro da Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos da Penha.
Penha, aliás, é o bairro em que Itamar morou de 1976 até o final de sua vida, em 2003.
Também é provável que o nome “Benedito” tenha sido usado como uma ironia para o termo “maldito”, a qual era usado para se referir a Itamar.
“João dos Santos Silva”, nome e sobrenomes comuns no Brasil, servem para apontar que existem vários Nego Dito no país. Por fim, “Beleléu”, uma gíria que pode significar “fracasso”, seria usada para representar um personagem que não tinha possibilidade de ter sucesso.
Essa análise foi feita por Rita de Cássia da Cruz Silva, em dissertação sobre a carreira do músico. De acordo com ela, várias referências na faixa funcionam como uma “releitura ficcional” do próprio caminho de Itamar como artista.
Na música, ele encarna um sujeito “nascido em Tietê” e que tem sangue quente. “Eu me invoco, eu brigo, eu faço e aconteço, eu boto pra correr”, diz, cheio de atitude, em um trecho.
Logo após, o Nego Dito adianta que está pra poucos amigos. “Não gosto de gente, nem transo parente, eu fui parido assim. Apaguei um no Paraná, pá, pá, pá, pá”, entoando os sons de tiros.
O que existe de real?
De fato, alguns elementos fazem parte da biografia de Itamar Assumpção. Nascido em Tietê, cidade do interior paulista, ele se mudou aos 12 anos para Arapongas, no Paraná, onde passou a fazer parte de um grupo de teatro.
Na década de 1970, Itamar começou a frequentar Londrina, cidade vizinha a Arapongas que era palco de festivais de teatro. Nessa época, em um dos trajetos entre os municípios, Itamar chegou a ficar preso durante alguns dias por não ter apresentado a nota fiscal de um rádio que carregava.
“Eu estava esperando o ônibus com uma bolsa, ingênuo, coitadinho, santinho… Só que pretinho, né? São Beneditinho ali”, contou Itamar em uma entrevista a Robinson Borba, em 1993. “Aquilo me fez virar gente. Eu era anjo demais. Passei 23 anos numa boa, mas em cinco dias virei gente”, continuou.
Conforme analisa Rita de Cássia, quando Itamar afirma que “apagou um no Paraná”, ele parece estar se referindo a ele próprio, o rapaz ingênuo que tinha uma vida tranquila no interior paranaense.
“Ali, impulsionado pela experiência do racismo e da humilhação, ele virou gente, matou o menino e virou homem. Um homem que se viu circunstancialmente como perigoso e resolveu assumir essa persona para seu próprio benefício e sobrevivência”, diz ela.
Nego Dito, de Branca Di Neve
Posteriormente, surgiu a versão de Nego Dito em samba rock. Ela foi lançada no álbum Branca Mete Bronca!, que também tem faixas de compositores como Marku Ribas, Jorge Ben, Bedeu, entre outros.
Era o primeiro LP da carreira solo de Branca Di Neve (apelido de Nelson Fernando de Moraes). Antes que trilhasse esse rumo, ele havia trabalhado com nomes de peso, como Toquinho, Benito de Paula, Tom Zé e Luis Vagner. Ele também tocou surdo no grupo Os Originais do Samba, onde participou de três discos.
O músico foi um dos principais nomes de uma geração do samba rock que veio depois de Jorge Ben e Bebeto, mas antes de artistas como Marco Mattoli, do Clube do Balanço. O próprio Mattoli afirmou em uma antiga entrevista que Branca Di Neve é praticamente o inventor do samba rock moderno.
Como resultado da roupagem completamente diferente, o sentido da faixa também parece ter mudado nas mãos de Branca. Em livro sobre Nego Dito, o pesquisador Walter Garcia afirmou que a regravação serviu como uma “afirmação da identidade negra por meio do samba rock”.
Relação entre Itamar e Branca
Existem poucos relatos na internet sobre a relação entre Itamar Assumpção e Branca Di Neve. No vídeo acima, gravado em 1999 no programa Ensaio, da TV Cultura, Itamar dedica a música ao Branca. “Mais preto que eu o Branca Di Neve”, brinca.
A pesquisadora Rosa Couto entrevistou Vange Milliet, integrante da banda Isca de Polícia, para sua tese sobre Itamar Assumpção. De acordo com Vange, o músico ficou satisfeito com a versão de Branca Di Neve.
“Ele ficou mega, hiper feliz”, disse ela sobre a recepção de Itamar, que era bem mais conhecido na cena alternativa. “Ele falava: ‘Tá vendo? Eu sei que eu sou popular'”.
A versão de Branca Di Neve para Nego Dito ainda viria a aparecer no disco póstumo Branca Mete Bronca Volume 2, lançado em 1989. O cantor morreu aos 38 anos em decorrência de um derrame cerebral pouco antes do lançamento do segundo trabalho solo.
O álbum conta ainda com Fico Louco, outra composição de Itamar Assumpção. Essa regravação também seguiu um caminho bem diferente da original e parece ter incluído Bebete Vãobora, de Jorge Ben, como música incidental logo no início.
Itamar Assumpção, nascido em 1949 – apenas dois anos antes de Branca Di Neve –, morreu em 2003, aos 53 anos, por complicações decorrentes de um câncer no intestino.