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Quem é o Charles cantado por Jorge Ben?

Em mais de 50 anos de carreira, Jorge Ben apresentou vários personagens em suas músicas. Um desses nomes aparece no título de três faixas: Take It Easy My Brother Charles (1969), Charles Anjo 45 (1970) e Charles Jr. (1970).

Entre essas gravações, talvez a que gere mais curiosidade seja a segunda: afinal, quem foi Charles Anjo 45? Ele realmente existiu? O que sabemos sobre ele?

A letra dessa faixa apresenta quem seria o “Robin Hood dos morros” e o “Rei da malandragem”. Mas um dia Charles, que era amado pelo povo, foi preso e o morro virou uma bagunça.

Jorge, então, imagina como será o retorno de Charles, que vai trazer consigo “paz, alegria geral”:

Todo morro vai sambar antecipando o carnaval
Vai ter batucada, uma missa de ação de graça
Vai ter feijoada, whisky com cerveja
E outras milongas mais…

Trecho de Charles Anjo 45, de Jorge Ben

Quem foi Charles Anjo 45?

Charles Anjo 45 é Charles Antônio Sodré, um personagem que Jorge Ben conheceu na região da Tijuca e do Rio Comprido, bairros no Rio de Janeiro onde o cantor viveu parte de sua infância.

Essa informação aparece em uma entrevista para a revista Veja em 1970, em que Jorge diz que Charles é um amigo de infância. Não foi possível encontrar mais informações sobre o Charles real, mas segundo o cantor, o personagem da música era filho de português e tinha 28 ou 29 anos naquela ocasião.

“É um cara que por motivos diversos aos meus se meteu em bobagem. Bobagem, não sei, ele tava na dele… O Charles tinha mil coisas, tinha ponto de bicho, tinha boca de fumo, mas é um cara bacana, sensacional, pô. Ele foi preso por causa de uma [arma calibre] 45. Ele usava 45, depois é que ele foi preso, condenado”, afirmou Jorge.

Jorge Ben à revista Veja, em 1970
O Mundo Encantado e O Som de Jorge Ben: em entrevista à revista Veja, em 1969, o cantor explica quem é o personagem de Charles Anjo 45 (Foto: Divulgação/Veja)
O Mundo Encantado e O Som de Jorge Ben: em entrevista à revista Veja, em 1969, o cantor explica quem é o personagem de Charles Anjo 45 (Foto: Divulgação/Veja)

A explicação dada à Veja também foi citada por Zuza Homem de Mello, no livro A Era dos Festivais: Uma Parábola. Isso porque a música foi inscrita no IV Festival Internacional da Canção, de 1969, mesmo sem o conhecimento de Jorge Ben. Essa versão é a que seria incluída no álbum lançado por ele no mesmo ano.

“A apresentação no FIC, cuja metade final era uma sensacional batucada com apito, pandeiro, cuíca e atabaque, foi calorosamente aplaudida por uns, intensamente vaiada por outros e duramente criticada pela imprensa”, contou Zuza, no livro.

Aqui vale uma observação: para a apresentação no festival, Jorge Ben convidou Luis Carlos Fritz, Nereu e Joãozinho Parahyba, com quem tocava na boate Jogral, em São Paulo. O grupo ainda não tinha nome e veio a se chamar Trio Mocotó, como mostra uma reportagem da revista Trip, de agosto de 2001.

Em entrevista ao Roda Viva, da TV Cultura, em 1995, Jorge Ben voltou a comentar sobre Charles Anjo 45. Como canta na música, ele disse que o personagem era um “anjo” porque, “quando ele chegava, tudo ficava bem”.

“Foi uma homenagem ao malandro que eu conheci, que era o Robin Hood, na época, dos morros. E ele sempre tinha que voltar pros morros. Quando ele voltava pro morro, a paz voltava pro morro. Quando não tava no morro, era tudo que eu cantei na música.”

Jorge Ben ao Roda Viva, da TV Cultura, em 1995

Na mira da ditadura

Nessa entrevista à TV Cultura, Jorge Ben diz que a ditadura militar cobrou explicações sobre a faixa, mas, no caso dele, não houve grandes consequências. Mas Caetano Veloso, que também fez sua versão, diz que a sua gravadora temeu enfrentar problemas com o lançamento.

No podcast Narciso Em Férias, Caetano conta que gravou Charles Anjo 45 primeiro, mas a gravadora optou por adiar o lançamento por causa de sua prisão. Ela só foi lançada depois de seu exílio, ainda em 1969.

“A gravadora que ia lançar segurou, porque pareceria estranho a minha voz aparecer no rádio falando de um preso que devia ser solto, um cara que todo mundo adorava na favela, no morro.”

Caetano Veloso, no podcast Narciso Em Férias

A outra versão

Outra interpretação é de que Charles Anjo 45 seria Avelino Capitani, que fazia parte da Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil (AMFNB). Dias antes do golpe de 1964, o coletivo protestou por melhores condições de trabalho, no que ficou conhecida como a Revolta dos Marinheiros. A associação foi fechada, e os integrantes do protesto foram presos pela Justiça Militar.

Avelino foi preso, fugiu para Cuba e voltou ao Brasil na clandestinidade anos depois. Ele foi considerado “um guerrilheiro autêntico”, segundo reportagem de dezembro de 1969 do Jornal do Brasil, recuperada pelo historiador Flávio Luís Rodrigues, em sua tese de doutorado para a Universidade de São Paulo.

Naquela ocasião, Avelino havia trocado tiros com a polícia, sofreu uma hemorragia e fugiu para o Morro do Juramento, no Rio de Janeiro, onde foi socorrido pelos moradores. Ele contou ao historiador que, para escapar dos policiais, se escondeu em um buraco no meio de um matagal e por lá ficou durante dois dias.

Essa resistência teria feito Avelino ganhar a admiração dos moradores e notoriedade na imprensa: Charles seria uma ironia por sua aparência lembrar a de um estrangeiro; Anjo devido ao seu apelido “anjo loiro”; e 45 por conta da arma usada por ele.

Avelino Capitani, que fez parte de organizações como o Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR8) e o Partido Comunista Brasileiro (PCB), morreu em 2022.

Não foi possível encontrar declarações de Jorge Ben sobre Avelino Capitani. Além disso, é importante ressaltar que a fuga de dezembro de 1969, pela qual o apelido de Charles Anjo 45 ficou conhecido, só aconteceu dois meses depois da apresentação da música no Festival Internacional da Canção.

Há também uma história bem humorada envolvendo a música e o futebol. Era novembro de 1988, e o Bahia tentava superar o Corinthians para chegar à final do Campeonato Brasileiro. O jogo estava 0 a 0, mas, no segundo tempo, um jovem de 20 anos entrou em campo, sofreu a falta que levou ao primeiro gol e aos 45 marcou o segundo para o time baiano: o atacante Charles Fabian viraria Charles Anjo 45 para a torcida tricolor.

Jorge Ben em show na Virada Cultural de São Paulo, em abril de 2008 (Foto: Natalia Bezerra/Flickr/Wikimedia Commons)
Jorge Ben em show na Virada Cultural de São Paulo, em abril de 2008 (Foto: Natalia Bezerra/Flickr/Wikimedia Commons)

E os outros Charles?

As músicas para Charles podem ser lidas como uma trilogia. Nela, Take It Easy My Brother Charles seria uma tentativa de controlar a raiva de um parceiro, Charles Anjo 45 uma forma de homenageá-lo e Charles Jr. um manifesto por liberdade.

Eu tenho fé, amor e a fé no século 21
Onde as conquistas científicas, espaciais, medicinais
E a confraternização dos homens, e a humildade de um rei
Serão as armas da vitória para a paz universal

Trecho de Charles Jr., de Jorge Ben

À TV Cultura, Jorge disse que o Anjo 45 não é o mesmo de Take It Easy . “É outro. Como Charles Jr., é outro. O Charles Jr. é o filho do Charles”, disse o cantor.

De qualquer forma, é interessante notar como Jorge Ben criou um universo em torno dos personagens cantados por ele. Além de Charles, é impossível esquecer de Domingas, Jesualda, Fio Maravilha e tantos outros.

Take It Easy My Brother Charles foi regravada por nomes como Astrud Gilberto, Som Três e O Rappa. A faixa também faz parte de uma cena marcante do filme Samba, estrelado pelo francês Omar Sy. Já Charles Anjo 45 ganhou versões não só na voz de Caetano Veloso, mas também de Gal Costa, Sandra de Sá e Os Paralamas do Sucesso.

E o trecho de Charles Jr. destacado acima também foi citado nas faixas Abenção Mamãe, Abenção Papai (1984), do próprio Jorge Ben, e Vivão e Vivendo (2002), do Racionais MC’s. O grupo convidou Jorge para cantar a versão de 1984 na abertura do show 1000 Trutas 1000 Tretas (2006), lançado em DVD.